terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

Intrometimentos

Esta bela semana Lenocínio Baptista, no preciso momento em que se fazia à porta do Beco do Julião, foi admoestado por uns comentários que o injuriaram. "Chamaram-me franganote!", disse-nos. Mas mal se havia apercebido que os comentários eram aliás dirigidos ao pobre rapaz que o ultrapassara passavam uns meros segundos. Por Lenocínio, vítima de maus tratos na sua adolescência conturbada às mãos dos seus populares colegas, que lutava com a fechadura, passaram dois gandulos desejosos de despejar no pobre franganote as mágoas das suas desilusões. Agarraram-no pelo colarinho de uma vestimenta insuficiente, encostaram-no à suja parede e sacudiram-no em busca do dinheiro que nas suas mãos daria para um parco pão. A pernícia e a crueldade não lhes fora incutida nas suas miseráveis infâncias e partindo desse princípio séries de conjecturas foram formuladas na fraca gnose de Lenocínio, manchada pelas memórias do seu errante crescimento e pela fúria que um cidadão exemplar sentiria face à sua impotência. Lenocínio, portanto, já não investia a chave na solta fechadura, mas olhava com desagrado e mal-estar as iniquidades desta nova vaga de seres que o ultrapassariam na simples (em Teoria), mas tornada complicada pela Sociedade (na prática), tarefa de viver. "Facínoras!" gritou indiscriminadamente em direcção à injustiça! Mas foi precisa uma repetição mais convicta para alertar os gaiatos para a presença de uma reles autoridade moral, se é que uma autoridade moral é algo que de facto existe e não meramente aceite. A sua idade adulta talvez os afastasse da prossecução dos seus vis fins. Porventura a vergonha faria suas mãos retirarem-se do colarinho alargado do pobre vitimado. A essência das suas acções fora posta em causa, contudo! E Lenocínio imediatamente se arrependia, assim que encontrava nos olhares desafiantes dos jovens os mesmos que uma década antes antecipariam a sua indevida colocação numa retrete pública. Por segundos que, dependendo claro do agente, se prolongavam mal educadamente, ambos os pequenos seres confrontaram o nosso advogado estagiário, possivelmente em busca de uma nova investida ou de um pedido de desculpas sincero. Nada conseguiram, porquanto Lenocínio não se permitia mover nem um milímetro, não fosse a sua acção turbulenta provocar nos animais reacções explosivas. Há dias, contou-nos Lenocínio na deferente posição de único membro da César Editoras associado à rede social Whatsapp, recebeu um vídeo avassalador de um pobre ser caído em desgraça no que parecia uma reserva natural em África. O seu destino traçado por uma manada de 5 Tigres. Deste modo, numa possível crise existencial, sentia a necessidade de se manter afastado da sociedade durante uns tempos para pôr os seus pensamentos em ordem antes de a ela regressar. Quanta iniquidade o mundo presencia diariamente. Aqueles que num instante fulminante a presenciam, a contragosto, compreendem a bolha que habitam e tais descobertas apenas contribuem para o seu já crescente estado de ansiedade, proporcionalmente directo à sua maturação. Avante. Assim que Lenocínio acordou das suas divagações ocasionais, sobre a sua infância, sobre as derradeiras finalidades de seu dia, sobre os tremores sentidos naquilo que imaginava ser o seu fígado, reparou na progressão feita pelos dois mafarricos que agora diante de si se posicionavam, de modo a encurralá-lo contra a fraca porta do Beco. Lenocínio, já afastado da sua adolescência pelo passar do tempo, que conhecia o pior das vitimizações físicas e psicológicas na primeira pessoa, deduziu que a situação não poderia alguma vez caminhar para terreno mais árido. Eis se não quando, no seio dos transeuntes que mais se apressavam quanto mais perto se abeiravam da infeliz cena aparece  Bruna, produzindo o derradeiro efeito nas intenções dos mafiosos, agora entrelaçadas. Ou seja, por um lado as questões de orgulho, por outro a necessidade imutável e permanente de promover a já existente promiscuidade, ferramenta indispensável ao empoderamento da mulher. Agradais tão simplesmente e não sedes vós nem o que deveríeis ser, posto que tanto manterdes vossa inaceitável conduta como cometeis tramas quebrantes da confiança fundamental à edificação de uma Sociedade.
Que rumos trilharia esta situação? De que forma inequívoca seria Lenocínio de novo assinalado? Quais os motivos que o justificariam? Tais perguntas são feitas apenas porque o confronto não mais se prolongou, pois se assim tivesse sido Lenocínio não estaria jamais vivo ou recusar-se-ia contar-nos as humilhantes mazelas que dois graves adolescentes lhe haveriam cometido. Na verdade a sua sorte, como tantas vezes acontece em contos de índole popular, foi Viktor Khazyumhov (ou o Mujique, como ofensivamente lhe chamamos há umas semanas) ter aparecido à porta ao ter sido acordado pela irrequieta chave na porta. A sua bebedeira era ainda totalmente perceptível nas suas acentuada rugas. Talvez se tivesse deitado uma hora atrás. Talvez não devesse usar a nossa antiga casa de banho para produzir barricas de etanol. Enfim, na repentina presença de um portentoso, alto e mal amanhado homem de 60 e muitos anos que na sua mão esquerda empunhava uma garrafa agora partida os gandulos escolheram seguir caminho montados na famosa bicicleta da aldeia em detrimento das suas gloriosas pretensões.
Vasculhando a sua carteira Lenocínio encontrou a chave certa e desculpou-se ao experiente tajique que saindo pela porta por onde o advogado estagiário entrava lhe deu um descuidado calduço na nuca, causa do seu tombo para a frente.


André Lazarra, Consultor Linguístico


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