quarta-feira, 4 de julho de 2018

Um Cão Chamado Leopoldo

Ilações retiradas de um manuscrito hoje descoberto.

Eram 9 da manhã quando André Lazarra penetrava, a custo, no Beco do Julião pela sua porta enferrujada e pela primeira vez em dois meses e meio. Todos os funcionários se haviam esquecido da César Editoras. Lenocínio Baptista, advogado estagiário, prolongo de facto o seu estágio ainda vigente e não sabemos onde ele anda. Nunca soubemos. E o leitor, recorda-se daqueles tempos em que a nossa actividade cibernética era regular e a restante afastada das webs a mais sigilosa possível? No presente dia nem uma nem outra. Todos nos esquecemos da empresa, à guisa de um melhor pretexto para nos esquivarmos da labuta.
Como nos relata Lazarra numa letra fastidiosa, assim que ultrapassou as tábuas que barricavam o corredor que segue a porta principal do Beco, formando  uma porta improvisada, mas caída entretanto, descobriu que, por uma das muitas outras entradas ou fendas nas quais não existem barreiras físicas à entrada deveria ter entrado (ou imiscuído) um pequeno mas bruto cachorro. "Leopoldo?", pensou Lazarra (Lazarra, 2006). Ora, o nosso consultor linguístico e bandeireiro, servindo-se unicamente (i.e. de forma única) da sua memória eidética reconheceu o bicho de uma impressão A4 afixada num poste de electricidade na mesma rua que comporta a porta do Beco. E, como continua num jeito jocoso, contentou-se com o facto de os donos não terem chamado Leopoldo a um pastor belga. E haverem-no publicado de forma tão abrangente.
Pastor belga não era e Lazarra, que de cães não percebe nada (só de cadelas como diz desgastantemente), não conseguiu identificar a raça do cão. E no estado em que o encontrou teve dificuldade em compreender onde estava a sua frente, onde estava o seu detrás. A mesma dificuldade acontece apenas em animais que se valem dessa confusão para sua própria advantagem, como a manhosa cobra enrolada que, escondendo a sua cabeça nos muitos rolos que a encobrem, dificulta a missão daquele cuja opinião sobre esta ideia diverge muito no campo a priori e a posteriori.
Lazarra progride "No degredo do Beco se me avistei desse tal animal, relaxado jaz sobre uma massa castanha de frutos incertos, creio tratarem-se de fezes suas, ladeado portanto por um pacote outrora amarelado de biscoitos rançosos e um valente saco de seis quilogramas de umas pepitas brancas não similares a esferovite em razão do seu tamanho. O saco está entreaberto e rasgado".
O cão havia comido veneno para ratos, constata Lazarra catedraticamente. E na sua letra magoada infere-se alguma dor, especialmente quando escreve que "... um cão morto não é capaz de aprender lições valiosas. Enquanto morrerem assim não surgirão ocasiões pertinentes de aprendizagem. Seus donos os libertam nos zorraios da sua displiscência e quando o dia se alonga tarde e o cão comete o crime capital ausentam-se. Houvesse eu mais serodiamente partido de um negócio que não me compete detalhar, e me deparasse com o canedo deposto mas ainda ofegante, servir-me-ia do meu dedo para o admoestar e corrigir os seus actos e, se numa disposição menos assertiva me encontrasse, se o meu tempo posterior não fosse corrompido por demais negócios, talvez levasse o cão à morada indicada, tocasse à campainha e fugisse reclamando mais tarde a recompensa sem o conhecimento de seus donos, preterindo consequentemente a alternativa sobejamente menos onerosa de o balear com pregos naquele mesmo local".
Lazarra, um carácter interessante para uma "novela" dostoyevskyana na qual um ponto contra Ortega y Gasset poderia ser feito naquilo que incide sobre a natureza humana.

Adeus Leopoldo, adeus. Eterna saudade. Morto, conquanto encontrado. A César Editoras voltará aos poucos, consoante os momentos. Nem sempre é fácil viver, hein?


César Editoras