Da eloquência servia-se Loubeluane, diminuto camponês das vastas pastagens que compõem o norte português. Na sua perdida terra à qual o correio não chegava era Loubeluane considerado o mais bravo de todo o campesinato. Os seus feitos eram ouvidos com atenção e contados com minúcia. Contudo, fruto da vertente reconstrutiva da nossa memória, passados meses da sua estreia a verdadeira versão dos factos, expressos pelo bravo plebeu, era distorcida pelos vários pontos que se acrescentam aos contos. Ainda assim, muitas eram as vezes em que estas alterações tornavam a história gradualmente mais pasmante e soberba. Várias eram as discussões motivadas pelas diferentes versões da história que os aldeões da região iam conhecendo, certos da sua versão, incrédulos face ao feito impossível que o opositor avançava. Com efeito, já nenhuma alma questionava a veracidade do heroísmo, apenas os meios que a ele conduziram.
Geralmente ao lusco-fusco, sentado no fofo feno depositado no atrelado de uma carroça, Loubeluane iniciava os seus discursos, gesticulando erraticamente, ora atingindo violentos frenesins, ora incutindo o medo através de longos silêncios. Inquestionável efectivamente era a sua oratória, capaz de mover o mais absorto dos ébrios. A oralidade do curto homem estava de tal forma desenvolvida que muitos eram os homens de razão que, ainda discordando das conquistas gloriosas que Loubeluane alegava ter conseguido, o visitavam, a ele e à terra, para numa retórica emotiva quebrarem as suas rotinas. Ao final do dia a fabulosa reunião semanal de roda da carroça era aguardada ansiosamente pela pouca população das terras que rodeavam o centro cultural daquele determinado e esquecido canto do reino.
No dia em questão Loubeluane havia deixado a sua audiência na proximidade da carroça durante um tempo talvez excessivo. De dentro cabana de onde sairia, antes de caminhar cerca de dez metros e subir para cima do feno, ouvia-se uma conversa acesa e amarga, da qual emergiam de quando em vez alguns sinais de briga. As nuvens cobriam o céu em pequena escala, mas o medo da precipitação inquietava a multidão que a cada novo vislumbre da sua janela por parte de Loubeluane parecia aumentar para o dobro. A carroça onde se desenrolaria o tenebroso espectáculo, sobre a qual as mais recentes façanhas do herói se ouviriam, pertencia a um camponês que se abnegara e lá a deixara, no centro da vila, receoso que o temperamento bipolar de Loubeluane (algo que tornava a sua prestação gloriosa) embirrasse com este "acto de desrespeito" e se recusasse a regressar às actuações. Hoje, como resultado da demora, o dono do veículo ameaçava removê-lo com frequentes gritos, testando o carácter do bravo camponês.
Pouco tempo depois Loubeluane saiu finalmente da sua cabana, empunhando uma espada e com ela abrindo caminho por entre as pessoas. Seguido de dois aios, que sua capa simbolicamente suportavam de forma a impedir o contacto com a lama, símbolo daquilo que é porcamente comum, Loubeluane guardou a arma no coldre e subiu para cima do seco feno, subsequentemente adoptando uma postura imponente e contemplativa, assim distanciando-se do povo, cuja missão era a admiração incondicional. Alto e espadaúdo sobressaía do meio da pequena multidão, que na expectativa um cerimonioso silêncio criara. Visto de longe, da planície cultivada que ladeia a aldeia a sul, o espectáculo nada menos que formidável seria. As silhuetas magníficas, os vultos, os sons que se aproveitavam do silêncio iniciado, o sol escondendo-se por detrás dos íngremes montes encostados aos amontoados de pedra humanamente erguida. Tais condições nunca antes haviam sido encontradas, não pelos mercadores, não pelos estrangeiros povos nómadas de etnia mesclada, não pelos próprios habitantes da povoação descrita. Loubeluane compreendeu-o, do alto do seu posto vigilante.
Com um movimento rápido do seu braço esquerdo estendeu o braço fazendo estremecer a sua capa escura. Iniciou um discurso ardente e fulgurante, incisivo e inquietante. Loubeluane, com as suas palavras bem pronunciadas e voz estridente e profunda incutia nas pessoas os receios com que não desejavam viver, a elas falando dos demais perigos que haviam chegado a outras regiões, e que para esta caminhavam! "Uhs" se faziam sentir e ouvir no seio dos homens, mulheres e crianças que, por instinto, se aproximavam gradualmente mais da carroça. As espinhas estremeciam ao tomar conhecimento de mortes, lobos e homens corruptos do reino, que limpariam os campos e crimes hediondos estariam dispostos a cometer! Ora, grande parte dos terrores relatados pelo corajoso camponês, numa outra ocasião semelhante a esta, já haviam sido motivo de uma formosa e inflamada oratória. Nessas ocasiões, nas quais evocava os seus actos corajosos e minuciosamente descrevia os métodos através dos quais os mais agressivos perigos havia afastado, Loubeluane era aplaudido e aclamado como um imperador. Assim que terminava a sua narrativa efectuava uma pausa sucinta, fitava os seus pés como se diante de um altar se encontrasse, avançava a perna direita e, de punhos na cintura, peito e queixo em riste e olhar fixado no horizonte, permitia que uma triunfal manifestação de apreço e incontrolável balbúrdia em sua roda se desenrolasse. A carroça, embora pesada oscilava, mas o seu estável centro de gravidade impedia o tombo.
Neste lusco-fusco glorioso, onde as cores facilmente condicionam o estado de espírito daqueles que as vislumbram, Loubeluane encontrava as condições perfeitas para impor à história desta sua terra o seu dia mais marcante e incontornável. "Nunca será apagado da memória das futuras gerações!" pensou.
O seu discurso corria como a cristalina água num belo ribeiro. A atenção da audiência por ferros presa, a sua cara em constantes esgares face à brilhante e imprevisível oralidade do locutor. Loubeluane relatava uma história sua de há dois meses, que havia guardado para uma ocasião especial, o dia de então. Era um belo conto de um resgate de uma donzela, que nas mãos de um grupo criminoso organizado havia caído, grupo criminoso esse com fama de implacabilidade e invencibilidade. Loubeluane aproximara-se de uma delegação destes criminosos, constituída por quatro bandidos tenebrosos. Loubeluane aproximava-se vagarosamente e escondia-se na densa vegetação. Cada palavra proferida aumentava o estado de agitação do aglomerado de pessoas. Foi nesse momento que os fora-da-lei encontraram Loubeluane, empoleirado numa carroça e rodeado de pessoas. Um grupo de quatro homens apropriadamente armados apareceram por detrás da roda de pessoas e gritaram "Quem é o responsável por esta imediação?".
"São Saltimbancos!" exclamou alguém notoriamente assustado. Mas face a uma ameaça clara não havia quem não soubesse a identidade do responsável e, em massa, dedos foram apontados em silêncio para o homem no topo da carroça, que um ar de espanto rapidamente substituiu por um de enorme confiança, cerrando os olhos e franzindo a testa. "Quem sois?", perguntou Loubeluane recompondo-se. "Descei dessa carroça e dizei aos teus súbditos que se coloquem ali ao fundo, caso não quereis serdes esquartejados como cães vadios". Com quanta calma haviam sido pronunciadas aquelas palavras, vindas do mais pérfido inferno! "Não" retorquiu o responsável, cuja resposta com poucos e sucintos gritos e aplausos de apoio foi recebida. "Como quizerdes, iremos por conseguinte arrasar tu'terra pelo chão, conspurcar tus mulheres e separar tu cabeça de tu corpo!". "Tentai e sofrei as consequências!". "Considerarde-vos a astúcia deste reino! Por Deus mi palavra te ofereço em como cumprirei até ao último requisito as condições meritoriamente aqui expostas!" "Uma questão de honra, hem? Pois bem me considero a astúcia deste reino ao desafiar individualmente cada um de vós, oh injustos saltimbancos, para um duelo de espadas! Vereis como a vossa garganta cortada a mesma filáucia não comporta!" . "Seja! Serei o primeiro, com o mais gratificante gosto! Avançai!" Assim que o chefe saltimbanco se aproximou Loubeluane conseguiu finalmente fitá-lo sem enganos. Uma portentosa figura, de ombros largos e peito enchido lhe surgiu diante de si. Loubeluane nervoso já se encontrava e na sua retórica tinha depositado todas as suas confianças. O dilema erguia-se em seu redor: Apostar na sorte e consumar a sua mentira diante daqueles que apenas a ouviram ou fugir a sete pés condenando ao estupro cinquenta mulheres e à morte homens e crianças.
Loubeluane desceu da carroça.
"Vade retro!" gritou gesticulando despresivamente em direcção aos três súbditos do homem que iria agora defrontar. À medida que em direcção a este avançava a sua confiança representava toda a sua esperança, de tal forma que as mãos não mais tremiam e seus olhos cuspiam o mais ardente fogo, motivado pela raiva, uma raiva não oriunda do facto de ter sido desafiado, mas resultante desta enormemente desagradável situação pela qual Loubeluane poderia para sempre ser relembrado, claro, pelas mais problemáticas razões. As regras foram estabelecidas enquanto o povo trocava a carroça pelo baricentro perfeito pelos dois gladiadores. Gritos de encorajamento e de horror serpenteavam por entre a expectante população daquela irrelevante terra perdida entre vales e montes.
Virando-se para trás, adoptando a mesma atitude que envergava enquanto em cima da carroça, Loubeluane afirmou firmemente: "Nada temeis, alías, sentide-vos sortudos, porquanto o derradeiro espectáculo não é aquele contado, mas o presenciado. Contudo, contado será este durante tantos anos quantos forem possíveis! Ora observai!".
Regressando à posição agressiva com a qual ainda há pouco se exibia, o corajoso camponês acenou com a cabeça e olhos ao seu adversário. Este retorquiu na mesma medalha e um baque uníssono ressoou, assim que a roda de gente recuou um passo em direcção à sua retaguarda. De seguida ambos os homens repetiram o aceno recente e a batalha conheceu o seu início. Ambas as espadas estremeceram ao entrar em contacto a meia altura, mas a rótula de Loubeluane não se manteve igualmente imóvel face ao pontapé que imediatamente a seguir sofreu. Caído no chão, afastado de sua arma, urrando de dor e aflição, ignorou completamente a escaramuça onde até há pouco tempo participara e agarrou-se ao osso que imediatamente largou por nojo, concentrando-se unicamente no seu dilacerante sofrimento. Deste modo foi incapaz de reparar no objecto que sobre a sua cabeça pairava, um objecto que haveria de descer e aterrar no seu pescoço, libertando-o com efeitos imediatos da dor que no joelho sentia. Efectivamente, quando os seu torso já não lhe pertencia a população não teve alternativa senão correr em direcções espontâneas, espalhando-se desordeiramente por entre as casas, levando o mais importante pertence ou uma arma de defesa e correndo de seguida em direcção ao arvoredo e à noite, pois apenas ambos a protegeriam. Ainda assim os quatro saltimbancos de imediato seguiram a sua promessa à risca e atrás dos aflitos correram, distribuindo ágil e eficazmente marcas de ferro naqueles que mais próximos se encontravam.
A vila foi pilhada, mas pouco dela retiraram os bandidos, que não só nada de novo ou farto encontraram, como também nisso não encontravam a sua motivação. A dor na face dos inocentes sim, essa era a sua verdadeira depravação. E a vivacidade da vila não seria possível sem a presença de quem a habitasse. Ora, à vivacidade da vila foi retirada toda a vivacidade. Crianças esquartejadas no chão, penduradas no topo de casas, mulheres desprovidas de flores, homens deitados sobre o sangue que outrora a uma distância tão semelhante servia um tão nobre propósito.
Na mentira colocou toda aquela gente a sua esperança, querendo acreditar que em tempos escuros a segurança lhe era assegurada. Em ideias vagas e vazias colocaram as suas vidas, sobre a oratória intrusiva assente em ideias desejáveis mas não fazíveis que a todos naturalmente apelavam adormecera a consciência. Numa única pessoa que alegava ser capaz dos mais brilhantes feitos viram a luz e, quando esta se apagou imediatamente, tarde demais para todos os esperançosos já era. O bom senso, ainda que em condições precárias, é sempre necessário. E Loubeluane personificou a desgraça que é a perfídia! As condições estavam reunidas, pensou ele, para o seu mais glorioso momento, mas, não pensou ele senão serodiamente, também estas abriam caminho para a mais humilhante derrota pública, da qual em parte a população fez parte, permitindo-a, incitando-a! Com efeito uma talha considerável das promessas do bravo camponês seriam cumpridas, ao ser fonte de inspiração para as gerações vindouras, aqueles que na sua falsidade encontrariam perniciosas características e repudiá-las-iam! Loubeluane seria relembrado, ainda hoje é de novo evocado, em nome de um bem maior que não defendia, a verdade. Assim deu origem a um desconhecido e honroso provérbio: "Língua célere e afiada não enverga espada".
Dormide bem Loubeluane, tu'história será contada durante tantos anos quantos forem possíveis!
César Editoras