quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Prémios César-Editorianos 2016

Na César Editoras muitas são as vezes em que alegamos identificar-nos com isto ou desprezar vigorosamente aquilo. Nunca, no entanto, conseguimos  realizar qualquer tipo de homenagem às entidades que idolatramos ou repudiamos. Deste modo decidimos criar os Prémios César-Editorianos, um breve e questionável momento de reconhecimento e consideração.
Compreendemos perfeitamente o que, para uns, poderá significar ser reconhecido pela César Editoras. Poderá ser simplesmente irrelevante e ridículo, ou destrutivamente prejudicial. A empresa admite ser, ainda que de forma incompreensível, fonte de enorme repulsa e um completo exemplo da degradação moral e comportamental da qual se deverá constantemente manter uma segura distância.

Posto isto, consideramos que apenas uma empresa "de valores dúbios e corrosivos" se daria ao trabalho de tomar em consideração aqueles que dela se querem afastar. Prosseguiremos assim com as nossas intenções.
Em último lugar falamos daqueles que por nós não veriam como acção vituperosa ser reconhecidos. Esses terão a sua talha de satisfação.

Em relação ao prémio salientamos as duas únicas e mais importantes datas:

  • Anúncio de Categorias e Nomeados - Dezembro de 2016
  • Anúncio dos Vencedores - Janeiro de 2017

Devemos alertar os nomeados e, especialmente, os vencedores que a cerimónia de entrega dos prémios é algo de supérfluo, dado que materialmente estes não existem e que grande parte dos vencedores, pelas razões detalhadas, não se comprometeriam a aparecer no evento. Da mesma forma, seguindo à risca a política financeira que a empresa orgulhosamente revelou nos recentes anos, qualquer forma de compensação financeira foi, desde o início, imediatamente afastada ao som das mais valentes risadas.
No entanto, se tiver ganho algo e desejar ser materialmente reconhecido, envie um e-mail à César Editoras (cesareditoras@gmail.com) com os detalhes da sua morada (e, opcionalmente, códigos de vários cartões de crédito) por forma a receber uma taça de plástico da loja dos trezentos com um post-it colado comportando os detalhes da sua valiosa conquista. 

Boa sorte,

André Lazarra, Consultor Linguístico



terça-feira, 27 de setembro de 2016

O Temerário

Da eloquência servia-se Loubeluane, diminuto camponês das vastas pastagens que compõem o norte português. Na sua perdida terra à qual o correio não chegava era Loubeluane considerado o mais bravo de todo o campesinato. Os seus feitos eram ouvidos com atenção e contados com minúcia. Contudo, fruto da vertente reconstrutiva da nossa memória, passados meses da sua estreia a verdadeira versão dos factos, expressos pelo bravo plebeu, era distorcida pelos vários pontos que se acrescentam aos contos. Ainda assim, muitas eram as vezes em que estas alterações tornavam a história gradualmente mais pasmante e soberba. Várias eram as discussões motivadas pelas diferentes versões da história que os aldeões da região iam conhecendo, certos da sua versão, incrédulos face ao feito impossível que o opositor avançava. Com efeito, já nenhuma alma questionava a veracidade do heroísmo, apenas os meios que a ele conduziram.

Geralmente ao lusco-fusco, sentado no fofo feno depositado no atrelado de uma carroça, Loubeluane iniciava os seus discursos, gesticulando erraticamente, ora atingindo violentos frenesins, ora incutindo o medo através de longos silêncios. Inquestionável efectivamente era a sua oratória, capaz de mover o mais absorto dos ébrios. A oralidade do curto homem estava de tal forma desenvolvida que muitos eram os homens de razão que, ainda discordando das conquistas gloriosas que Loubeluane alegava ter conseguido, o visitavam, a ele e à terra, para numa retórica emotiva quebrarem as suas rotinas. Ao final do dia a fabulosa reunião semanal de roda da carroça era aguardada ansiosamente pela pouca população das terras que rodeavam o centro cultural daquele determinado e esquecido canto do reino.

No dia em questão Loubeluane havia deixado a sua audiência na proximidade da carroça durante um tempo talvez excessivo. De dentro cabana de onde sairia, antes de caminhar cerca de dez metros e subir para cima do feno, ouvia-se uma conversa acesa e amarga, da qual emergiam de quando em vez alguns sinais de briga. As nuvens cobriam o céu em pequena escala, mas o medo da precipitação inquietava a multidão que a cada novo vislumbre da sua janela por parte de Loubeluane parecia aumentar para o dobro. A carroça onde se desenrolaria o tenebroso espectáculo, sobre a qual as mais recentes façanhas do herói se ouviriam, pertencia a um camponês que se abnegara e lá a deixara, no centro da vila, receoso que o temperamento bipolar de Loubeluane (algo que tornava a sua prestação gloriosa) embirrasse com este "acto de desrespeito" e se recusasse a regressar às actuações. Hoje, como resultado da demora, o dono do veículo ameaçava removê-lo com frequentes gritos, testando o carácter do bravo camponês.
Pouco tempo depois Loubeluane saiu finalmente da sua cabana, empunhando uma espada e com ela abrindo caminho por entre as pessoas. Seguido de dois aios, que sua capa simbolicamente suportavam de forma a impedir o contacto com a lama, símbolo daquilo que é porcamente comum, Loubeluane guardou a arma no coldre e subiu para cima do seco feno, subsequentemente adoptando uma postura imponente e contemplativa, assim distanciando-se do povo, cuja missão era a admiração incondicional. Alto e espadaúdo sobressaía do meio da pequena multidão, que na expectativa um cerimonioso silêncio criara. Visto de longe, da planície cultivada que ladeia a aldeia a sul, o espectáculo nada menos que formidável seria. As silhuetas magníficas, os vultos, os sons que se aproveitavam do silêncio iniciado, o sol escondendo-se por detrás dos íngremes montes encostados aos amontoados de pedra humanamente erguida. Tais condições nunca antes haviam sido encontradas, não pelos mercadores, não pelos estrangeiros povos nómadas de etnia mesclada, não pelos próprios habitantes da povoação descrita. Loubeluane compreendeu-o, do alto do seu posto vigilante.
Com um movimento rápido do seu braço esquerdo estendeu o braço fazendo estremecer a sua capa escura. Iniciou um discurso ardente e fulgurante, incisivo e inquietante. Loubeluane, com as suas palavras bem pronunciadas e voz estridente e profunda incutia nas pessoas os receios com que não desejavam viver, a elas falando dos demais perigos que haviam chegado a outras regiões, e que para esta caminhavam! "Uhs" se faziam sentir e ouvir no seio dos homens, mulheres e crianças que, por instinto, se aproximavam gradualmente mais da carroça. As espinhas estremeciam ao tomar conhecimento de mortes, lobos e homens corruptos do reino, que limpariam os campos e crimes hediondos estariam dispostos a cometer! Ora, grande parte dos terrores relatados pelo corajoso camponês, numa outra ocasião semelhante a esta, já haviam sido motivo de uma formosa e inflamada oratória. Nessas ocasiões, nas quais evocava os seus actos corajosos e minuciosamente descrevia os métodos através dos quais os mais agressivos perigos havia afastado, Loubeluane era aplaudido e aclamado como um imperador. Assim que terminava a sua narrativa efectuava uma pausa sucinta, fitava os seus pés como se diante de um altar se encontrasse, avançava a perna direita e, de punhos na cintura, peito e queixo em riste e olhar fixado no horizonte, permitia que uma triunfal manifestação de apreço e incontrolável balbúrdia em sua roda se desenrolasse. A carroça, embora pesada oscilava, mas o seu estável centro de gravidade impedia o tombo.
Neste lusco-fusco glorioso, onde as cores facilmente condicionam o estado de espírito daqueles que as vislumbram, Loubeluane encontrava as condições perfeitas para impor à história desta sua terra o seu dia mais marcante e incontornável. "Nunca será apagado da memória das futuras gerações!" pensou.
O seu discurso corria como a cristalina água num belo ribeiro. A atenção da audiência por ferros presa, a sua cara em constantes esgares face à brilhante e imprevisível oralidade do locutor. Loubeluane relatava uma história sua de há dois meses, que havia guardado para uma ocasião especial, o dia de então. Era um belo conto de um resgate de uma donzela, que nas mãos de um grupo criminoso organizado havia caído, grupo criminoso esse com fama de implacabilidade e invencibilidade. Loubeluane aproximara-se de uma delegação destes criminosos, constituída por quatro bandidos tenebrosos. Loubeluane aproximava-se vagarosamente e escondia-se na densa vegetação. Cada palavra proferida aumentava o estado de agitação do aglomerado de pessoas. Foi nesse momento que os fora-da-lei encontraram Loubeluane, empoleirado numa carroça e rodeado de pessoas. Um grupo de quatro homens apropriadamente armados apareceram por detrás da roda de pessoas e gritaram "Quem é o responsável por esta imediação?".
"São Saltimbancos!" exclamou alguém notoriamente assustado. Mas face a uma ameaça clara não havia quem não soubesse a identidade do responsável e, em massa, dedos foram apontados em silêncio para o homem no topo da carroça, que um ar de espanto rapidamente substituiu por um de enorme confiança, cerrando os olhos e franzindo a testa. "Quem sois?", perguntou Loubeluane recompondo-se. "Descei dessa carroça e dizei aos teus súbditos que se coloquem ali ao fundo, caso não quereis serdes esquartejados como cães vadios". Com quanta calma haviam sido pronunciadas aquelas palavras, vindas do mais pérfido inferno! "Não" retorquiu o responsável, cuja resposta com poucos e sucintos gritos e aplausos de apoio foi recebida. "Como quizerdes, iremos por conseguinte arrasar tu'terra pelo chão, conspurcar tus mulheres e separar tu cabeça de tu corpo!". "Tentai e sofrei as consequências!". "Considerarde-vos a astúcia deste reino! Por Deus mi palavra te ofereço em como cumprirei até ao último requisito as condições meritoriamente aqui expostas!" "Uma questão de honra, hem? Pois bem me considero a astúcia deste reino ao desafiar individualmente cada um de vós, oh injustos saltimbancos, para um duelo de espadas! Vereis como a vossa garganta cortada a mesma filáucia não comporta!" . "Seja! Serei o primeiro, com o mais gratificante gosto! Avançai!" Assim que o chefe saltimbanco se aproximou Loubeluane conseguiu finalmente fitá-lo sem enganos. Uma portentosa figura, de ombros largos e peito enchido lhe surgiu diante de si. Loubeluane nervoso já se encontrava e na sua retórica tinha depositado todas as suas confianças. O dilema erguia-se em seu redor: Apostar na sorte e consumar a sua mentira diante daqueles que apenas a ouviram ou fugir a sete pés condenando ao estupro cinquenta mulheres e à morte homens e crianças.
Loubeluane desceu da carroça.
"Vade retro!" gritou gesticulando despresivamente em direcção aos três súbditos do homem que iria agora defrontar. À medida que em direcção a este avançava a sua confiança representava toda a sua esperança, de tal forma que as mãos não mais tremiam e seus olhos cuspiam o mais ardente fogo, motivado pela raiva, uma raiva não oriunda do facto de ter sido desafiado, mas resultante desta enormemente desagradável situação pela qual Loubeluane poderia para sempre ser relembrado, claro, pelas mais problemáticas razões. As regras foram estabelecidas enquanto o povo trocava a carroça pelo baricentro perfeito pelos dois gladiadores. Gritos de encorajamento e de horror serpenteavam por entre a expectante população daquela irrelevante terra perdida entre vales e montes.
Virando-se para trás, adoptando a mesma atitude que envergava enquanto em cima da carroça, Loubeluane afirmou firmemente: "Nada temeis, alías, sentide-vos sortudos, porquanto o derradeiro espectáculo não é aquele contado, mas o presenciado. Contudo, contado será este durante tantos anos quantos forem possíveis! Ora observai!".
Regressando à posição agressiva com a qual ainda há pouco se exibia, o corajoso camponês acenou com a cabeça e olhos ao seu adversário. Este retorquiu na mesma medalha e um baque uníssono ressoou, assim que a roda de gente recuou um passo em direcção à sua retaguarda. De seguida ambos os homens repetiram o aceno recente e a batalha conheceu o seu início. Ambas as espadas estremeceram ao entrar em contacto a meia altura, mas a rótula de Loubeluane não se manteve igualmente imóvel face ao pontapé que imediatamente a seguir sofreu. Caído no chão, afastado de sua arma, urrando de dor e aflição, ignorou completamente a escaramuça onde até há pouco tempo participara e agarrou-se ao osso que imediatamente largou por nojo, concentrando-se unicamente no seu dilacerante sofrimento. Deste modo foi incapaz de reparar no objecto que sobre a sua cabeça pairava, um objecto que haveria de descer e aterrar no seu pescoço, libertando-o com efeitos imediatos da dor que no joelho sentia. Efectivamente, quando os seu torso já não lhe pertencia a população não teve alternativa senão correr em direcções espontâneas, espalhando-se desordeiramente por entre as casas, levando o mais importante pertence ou uma arma de defesa e correndo de seguida em direcção ao arvoredo e à noite, pois apenas ambos a protegeriam. Ainda assim os quatro saltimbancos de imediato seguiram a sua promessa à risca e atrás dos aflitos correram, distribuindo ágil e eficazmente marcas de ferro naqueles que mais próximos se encontravam.
A vila foi pilhada, mas pouco dela retiraram os bandidos, que não só nada de novo ou farto encontraram, como também nisso não encontravam a sua motivação. A dor na face dos inocentes sim, essa era a sua verdadeira depravação. E a vivacidade da vila não seria possível sem a presença de quem a habitasse. Ora, à vivacidade da vila foi retirada toda a vivacidade. Crianças esquartejadas no chão, penduradas no topo de casas, mulheres desprovidas de flores, homens deitados sobre o sangue que outrora a uma distância tão semelhante servia um tão nobre propósito.
Na mentira colocou toda aquela gente a sua esperança, querendo acreditar que em tempos escuros a segurança lhe era assegurada. Em ideias vagas e vazias colocaram as suas vidas, sobre a oratória intrusiva assente em ideias desejáveis mas não fazíveis que a todos naturalmente apelavam adormecera a consciência. Numa única pessoa que alegava ser capaz dos mais brilhantes feitos viram a luz e, quando esta se apagou imediatamente, tarde demais para todos os esperançosos já era. O bom senso, ainda que em condições precárias, é sempre necessário. E Loubeluane personificou a desgraça que é a perfídia! As condições estavam reunidas, pensou ele, para o seu mais glorioso momento, mas, não pensou ele senão serodiamente, também estas abriam caminho para a mais humilhante derrota pública, da qual em parte a população fez parte, permitindo-a, incitando-a! Com efeito uma talha considerável das promessas do bravo camponês seriam cumpridas, ao ser fonte de inspiração para as gerações vindouras, aqueles que na sua falsidade encontrariam perniciosas características e repudiá-las-iam! Loubeluane seria relembrado, ainda hoje é de novo evocado, em nome de um bem maior que não defendia, a verdade. Assim deu origem a um desconhecido e honroso provérbio: "Língua célere e afiada não enverga espada".

Dormide bem Loubeluane, tu'história será contada durante tantos anos quantos forem possíveis!


César Editoras




sábado, 17 de setembro de 2016

Projecto Musical "Emerge-Me!" Termina

Esta semana chegou um curioso e-mail à central de informação da César Editoras, assinado por André Lazarra que, nesse mesmo momento, defecava na casa de banho ao lado. Esperámos que ele terminasse e saísse para nos esclarecer pessoalmente as suas vontades.

Agora para os nossos leitores, o Consultor Linguístico explica-se:


"Já porventura se hão indagado a razão pela qual baptizei o meu primeiro projecto musical com o nome «Emerge-Me!»? Pois bem, não vejo melhor altura para vos colocar à disposição esta informação do que agora mesmo. Este primeiro projecto, como o nome tão claramente indica, tinha e teve como objectivo fazer a minha carreira musical «emergir», pelo que eu pedi-me, a mim mesmo, aos céus e à guitarra, capacidade e inspiração que me colocassem num patamar de reconhecimento e admiração capazes de sustentar futuros projectos. Uma carreira musical muitas vezes se assemelha em muito a uma pedra que rola. A sua intensidade terá sempre de aumentar, se desejar manter uma rota. Assim o primeiro empurrão está dado, empurrão que me coube somente a mim. Assim aproveito para anunciar o meu segundo projecto, que usará o meu nome e nada menos. Esse será o rolar da roda que, como tudo, terminará, mas conhecerá a mais gloriosa trajectória antes de embater num Pinheiro e ruir como todas as coisas sujeitas à acção humana. Mas tal não será possível sem o contributo (monetário apenas) daqueles a quem a minha música chega, de forma acidental ou não".


No total André Lazarra, através do seu projecto musical Emerge-Me! lançou dois álbuns, "Emerge-Me!" e "Numa Mercearia em Monção", e um álbum de Lados B, de nome "Itens Obscuros: Uma Colecção de Inseguranças", todos disponíveis ilimitadamente seguindo o link disponibilizado. 


Lenocínio Baptista, advogado estagiário

quinta-feira, 15 de setembro de 2016

Desacordos

Regressamos como prometido e como esperado.

Na primeira assembleia geral dos membros da César Editoras realizada esta quarta feira cujo intuito é o planeamento do trimestre Outonal nada de extraordinário ou novo aconteceu.
Em primeiro lugar, nenhum membro do staff César-Editoriano se demonstrou disposto a tomar a palavra, identificar e expor erros, pontos positivos ou outros aspectos de relevo merecedores de ser salientados. Em silêncio permanecemos cinco minutos. André Lazarra verificava se o seu copo de água manifestava manchas de prévias utilizações, ao passo que Lenocínio fingia escrever algo importante numa folha amachucada. Joaquim Orduras, presente e finalmente em território vimaranense, olhava o tecto e foi o primeiro a avançar uma ideia. "As obras conseguidas no Verão deixam a sua marca, embora a sua eficácia possa levantar aceso debate". Lisboa há tempos que não se molha. Com efeito uma pinga caía do tecto intermitentemente, aterrando num jarro disposto a aprisioná-las. Esse mesmo jarro, há várias horas assim destacado, havia enganado Lazarra, que dele para o seu copo água verteu, seguindo-se o silêncio dos seus imperturbáveis colegas.
Após a intervenção do poeta, cujos olhos permaneciam ainda no tecto, Lenocínio levantou os olhos das duas linhas já escritas e fitou-o friamente. Esta sala de reuniões, uma alcova anteriormente destinada ao arrumo de lixo, havia sido por si recuperada, "até ao último detalhe", dissera o advogado estagiário. A sala de cima, uma casa de banho nunca antes utilizada, também havia no período de veraneio por si sido trabalhada ou, noutros termos, desmontada. A recuperação do tecto, como em Junho aqui foi feito público, era da mais urgente iminência. Lenocínio nele decidiu trabalhar grande parte de todo o tempo que guardaria para, sem pagamento ou brio, recuperar o Beco do Julião. O jovem estagiário orgulhou-se não só do trabalho desenvolvido, como também da rapidez com que o executou. Esvaziou e limpou a nova sala de reuniões, comprou uma mesa redonda e branca no IKEA, roubou tinta branca e pintou as paredes, destruiu a canalização do tecto e arrancou a casa de banho do chão malvado. E agora, uma pinga caía novamente. Desceu de novo o olhar para o papel gatafunhado, pensativo. Joaquim continuou, em parte absorto: "Uma pinga de água, agora de água turva e pesada. Uma pinga capaz de transmitir a maior incerteza ao seu consumidor. Sinceramente não concebo com facilidade todos os males que tal acção me poderia conceder. Reparai com atenção na forma manhosa como se desprende do tecto e o abandona". Interceptando uma pausa mais longa e de igual modo o pensamento Lenocínio ergueu-se da sua cadeira e em cima da mesa colocou a mão direita, deixando à esquerda uma série de movimentos erráticos. Lenocínio garantiu ao poeta recostado à sua frente que todo o seu trabalho havia sido feito com o maior dos brios e vontades, admitindo também que não tolerava que este seu "colega" (e fez o gesto) passeasse a totalidade de uma estação pelas belas planícies europeias em busca de "inspiração" (e fez o gesto), em detrimento de contribuir com algo efectivo e prático para a empresa. Lenocínio sentou-se furioso, ajeitando o cabelo caído para o lado errado, pelo que caiu outra vez e de novo pediu para ser ajeitado. Ao ceder Lenocínio perdeu a paciência e esta saiu de si na forma de um berro a meia altura e uma palmada forte no cimo da mesa redonda e branca. Joaquim Orduras ergueu-se respirando fundo e deu a entender aos seus colegas que ia imediatamente dar início a uma longa e pausada admoestação à atitude do jovem advogado estagiário, aproveitando para defender a sua arte e a vida contemplativa pela qual desde cedo optara. No entanto, no momento em que todos os olhos esbugalhados em si repousavam, fez uma vénia à mesa e saiu da sala, levando consigo o seu chapéu pendurado numa viga da parede. À porta encontrou Viktor Khazyumhov, zelador, que colocou apenas um pé dentro da sala. Ao olhar em redor emitiu um esgar bastante pronunciado e seguiu o trilho de Orduras.
Sentadas à mesa restavam três pessoas, até ao momento em completo silêncio e inquietação. Lazarra de novo inspeccionava o copo e, de quando em vez, dava tragos na sua água, demonstrando o seu interesse e atenção nos assuntos do seu empregador. A raiva de Lenocínio não esmorecia e na sua cadeira já não encontrava qualquer conforto, ou no facto de nesse mesmo dia ir jantar com amigos que a Lisboa não vêm com frequência. O número de cervejas a que se tinha permitido já não lhe interessava e as duas frases que tinha escrito (temas de conversa que não o fizessem parecer aquilo que deveras é) acabariam num lixo qualquer da cidade, como ele um dia. Assim decidiu-se atirar ao escuro abismo da aleatoriedade e esperar cair quando o chão resolvesse aparecer. Considerou, até, não ir, mas a sua alternativa, dormir às escondidas no Beco do Julião, não lhe pareceu a melhor nesta situação, como doutras tantas vezes pareceu. A irritação tornava-se numa grave crise existencial e num denegrir da cor dos dias. Lenocínio já os contava, esperando pelo fim-de-semana, mas nele nada de bom vendo, porquanto este pequeno sofrimento seria seguido de mais uma semana de maior dor. Um ciclo vicioso. Para nada já caminhava. Não pensava em férias, na terra de seus pais e no abrigo em que esta consistia, nos seus amigos que havia perdido, naqueles com os quais fazia sérias cerimónias e nas benesses do tempo livre, livre para pensar nas coisas que o empurravam para a terra, a única coisa que neste momento o era capaz de receber de braços abertos. Quão rasteira era a sua vida! Sempre colado ao mais baixo lado de tudo. Nem na possibilidade da riqueza intelectual, que mantinha debaixo de olho mas à qual nunca se havia dedicado, encontrava conforto. Sempre que em algo matutava, sempre que o seu esforço era colocado nalguma coisa necessária, boa ou má, era imediatamente transportado para a dimensão do falhanço, por si ou por terceiros identificado. O seu esforço intelectual a conclusões auto-destrutivas o levava, o esforço prático a resultados insignificantes. E agora trabalhava numa empresa criminosa pertencente ao final da cadeia alimentar, onde apenas as refeições lhe eram pagas e a estadia conseguida pela calada.  Na sua maioria os erros do foro prático eram por si identificados, num ignóbil e desnecessário festival de autocrítica, mas hoje este frequente exercício havia sido conduzido por Joaquim Orduras!, um homem dedicado somente à contemplação e à busca de "inspiração", não ao seu mais nobre uso! Que maior humilhação poderia sofrer? Diante das únicas pessoas com quem poderia algum dia aspirar a estar com frequência no futuro próximo. Que quereria isto dizer da sua vivência? Que permaneceria para sempre no fundo da cadeia alimentar social, essa posição que alguém terá sempre de ocupar?
Sem olhar em seu redor, sem noção das suas vizinhanças, encontrando finalmente o conforto da cadeira, recostado nela bem fundo e de mão embutida no queixo, havia nesta sala pensando passado várias horas, e nisso reparou quando pela janela viu a luz amarela de um candeeiro de rua espalhada na parede do prédio do lado. Os seus colegas há muito já deviam ter saído e Lenocínio, ainda absorto e incapaz de pensar em qualquer coisa arrastou-se para o colchão onde passaria mais uma noite.


César Editoras