quarta-feira, 30 de março de 2016

A Cauterização da Ferida

Passeava de noite Lenocínio, idóneo, nos salões do Beco do Julião quando o azar o ceifou, causando-lhe uma forte dor na perna direita. Uma placa de metal que cobria o chão do 2º andar e o tecto do primeiro, de modo a não ser possível ver o carregamento ilegal de forceps de que dispomos, caíu-se-lhe em cima.
Afiada, aguçada e mal direccionada rodopiou no ar, afastando-se da cabeça do nosso advogado estagiário e dilacerou-lhe a coxa direita, antes de aterrar com um estrondo no chão de castanho.

Lenocínio, estupefacto e derrubado, sem imediatamente sentir a dor, naqueles momentos nos quais o choque a supera, sentiu apenas um calor intenso e um borbulhar antes de vislumbrar o ensopado de carne que se originara à sua frente. De repente, de progressiva intensidade, encontrou a dor que lhe subia pelo corpo acima até ao cérebro cuja necessidade lasciva de conhecimento masoquista lhe proporcionava um enorme desconforto. Rolando no chão tingia pó que o acolhera tempos antes, parando depois, recompondo-se e temendo esvair-se em sangue de forma cobarde, recusando encarar de frente os problemas que o assolavam.
A Ferida em si não era tão vasta quanto parecia no início. O sangue que rapidamente corria numa torrente ansiosa havia impedido a avaliação imparcial da situação. Lenocínio, como qualquer pessoa vitimizada por uma desgraça com a qual não demonstra qualquer paciência decidiu exagerar a situação, embora não estando rodeado de pessoas, e escolheu a hipótese que mais lhe conviria, a morte. Mas recompôs-se e parou passado não estava ainda um minuto, sentando-se no chão empapado, de pernas esticadas e mão sobre a ferida.

A situação era profundamente desgostosa. Entreabrindo as paredes do golpe Lenocínio lobrigava mesclas que não compreendia. Cabos, como nos contou, andavam soltos e cortados no âmago da sua coxa e o seu osso visível, mas intacto. A gravidade e a sua posição davam tempo a Lenocínio, que estimava já ter perdido mais de 3 litros de sangue. Nervoso, como a nós nos acostumou, Lenocínio procedeu à acção e tomou de enfiada e sem auxílio líquido três comprimidos de Metropolol, cuja função é diminuir o ritmo dos batimentos cardíacos, facultando ao agora lesado tempo precioso para se tratar.
De seguida arrastou-se em direcção a um aquecedor a gás, compra dispendiosa mas necessária este Inverno, com o objectivo de encostar a sua abertura à chama de modo a conceder controlo total à Adustão, parando entretanto a meio de uma parede para, e de maneira custosa, elevar as suas pernas contra esta, descansando a sua cabeça no solo, temendo perder a consciência a qualquer momento.
Chegado ao objectivo deparou-se com a dificuldade da posição que teria de aguentar de modo a atingir os resultados que, ainda assim, não seriam dignos de uma boa história, apenas uma mera referência ao cenário infrutífero e extremamente desapontante. Estaria alguém a entrar nesse momento na sala onde tudo se passara e pensaria de imediato que Lenocínio Baptista, fruto de sucessivas frustrações no foro da normalidade, desenvolvia agora um gosto bestial por mobília e acessórios.

Lembrando-se das obras passadas no segundo piso, de onde a placa tinha caído, Lenocínio lembrou-se de um objecto cruel, mas capaz de atingir objectivos. O seu tempo era escasso, ou parecia-lho.

Arrastando-se de novo, e com cada vez mais elevado custo, Lenocínio subiu as escadas. Repousando o cotovelo esquerdo no degrau superior, repousando a mão na ferida que o consumia, içava-se. Itens dos quais não há palavra ou descrição alegadamente espreitavam por entre as abas da cisão, forçadas pelo esforço que gradualmente requeria a cooperação das pernas. Lenocínio pensava desistir a cada novo degrau e a dor de repor os itens deslocados dentro da sua coxa reiniciava o leito do rio escuro que não terminava no seu sapato, mas corria lentamente pelas escadas abaixo até desaguar num lago imundo diante do primeiro degrau.
Mas a sua determinação ganhou novo fôlego. Neste lago que se formava Lenocínio, perto da primeira meta, o segundo piso, vislumbrou uma felpuda ratazana que cheirava sofregamente o sangue que do advogado estagiário era vindouro. Olhando para cima a escuridão do segundo piso e o silêncio de Baptista não a permitiam averiguar a sua fonte imediatamente, mas permitiam ao seu cérebro associar esta experiência a outras anteriores de valiosa recompensa.
Lenocínio entendeu que neste momento estava em pé de igualdade com o animal que lentamente o ia descobrindo, com curiosos e acutilantes olhares. Rodeando a poça que o intrigara, o roedor subia lentamente, com saltos pontuais mas de grande agilidade. Amedrontado, temendo o pior, lutando por sua vida estava Lenocínio pronto para a acção. Num movimento abrupto e necessário içou-se ignorando a dor e os poucos degraus que o separavam do pequeno segundo piso tornavam-se escassos a uma velocidade que, comparada com a anterior, prometeria enorme progressão. A ratazana sabia-o, sabia-o com certeza. Dúvidas não restavam. Era hoje! O que quer que fosse seria fraco, tal era a direcção da sua investida! Contos seriam impregnados nos genes dos seus descendentes! A purificação da linha através do mais valeroso acto! E, com a confiança de que se achava digna, com o ardor no coração que a preenchia, a ratazana aproximava-se lentamente, saboreando o momento, tal como um homem cadastrado que segurou com sucesso e estabilidade a vítima no chão, abafando os seus gemidos contra a almofada que, se fosse um ser racional ficaria igualmente afectada, compreendendo a hierarquia da situação, averiguando que outros aspectos do seu sucesso lhe poderão trazer maior agrado, tornando a experiência soberbamente mais única. Mas, tal como o senhor recentemente enunciado, a vaidade da ratazana não poderia ser superior à concretização daquilo que as condições permitem. É a altura de capitalizar.

No 2º Piso Lenocínio ergueu-se e suportou-se no seu rabo, buscando incessantemente algum objecto útil, enquanto a escuridão lhe ocultava o progresso do seu inimigo. Louco, o tempo passava demasiado rápido e demasiado devagar, no momento em que Lenocínio saiu de si mesmo, deixou de se ser a si e transferiu-se para uma outra dimensão, deixando o seu corpo aos encargos mais primitivos da consciência humana, de forma a lutar mais eficazmente com o roedor que o ameaçava.
Quando regressou a si mesmo, adrenalina impedindo a dor de se pronunciar, domando-a tal como o senhor referenciado, deparou-se com algo na sua mão. Um Forcep! Louvadas sejam as manhas de Lazarra! Mas as suas pernas adormeciam, com o medo e a fraqueza que tomavam conta de si. Inquieto decidiu abnegar-se, sacrificar algo para o seu próprio bem. Lembrando-se apenas da tortura que precisou de estudar para sobre ela escrever um texto elucidativo, que consiste em aquecer um balde encostado ao corpo de uma pessoa contendo um rato que, para escapar, vê no esgravatar da carne a sua salvação, Lenocínio lacrimejou, encostando-se a uma parede e fingindo já não estar na posse do seu impulso vívido.

A ratazana aproximava-se, seguindo o rasto deixado pelo nosso advogado estagiário. Não sabia o que era, mas não precisava: estava inerte e quente.
Sentindo-a aproximar-se do ponto de maior interesse, Lenocínio esforçava-se por não ofegar.
Rapidamente sentiu o momento chegar. A ratazana, orgulhosa, manhosa e ambiciosa não mordeu o isco imediatamente, mas escolheu penetrar fundo na origem da sua curiosidade, deixando Lenocínio incapaz de avaliar as vantagens e inconvenientes da situação. Seria bom tê-la tão certa na minha posse, mas tão emaranhada na minha confusão que a dor excruciante poderia causar momentos de ardor infinito e até comprometer o meu propósito?

Lenocínio não temeu. A luz do telemóvel que momentos antes retirara do bolso acendeu-se assim que sentiu a segurança firme e dolorosa da mordida do bicho que, assustado, ergueu sua cabeça, ainda relativamente dentro da ferida que, por sua vez, foi friamente colocada num movimento veloz e preciso de Lenocínio entre os forceps que na sua mão direita esperavam.
Um esguicho seguiu-se a um guincho tenebroso e a ratazana abandonou a sua cabeça, caindo no colo do homicida, sendo que esta última voou para todo o lado que conseguiu, fazendo confundir o seu rasto com aquele deixado por Lenocínio, que suspeitou que parte do sangue da sua vítima houvesse entrado sem impedimento na sua ferida entreaberta. A certeza foi substituída pelo optimismo e a vontade de chegar ao seu destino.

Chegando à sala de onde a placa que o ferira e arruinara a noite caíra, sala onde obras de restauro que datam de 2013 continuaram de forma mais consistente na última semana, Lenocínio encontrou a tocha de propano que motivara a subida. Agarrou-a com uma mão, apoiado sobre o cotovelo, pensando nas consequências da sua acção.
Apertando a ferida exposta com os forceps que ainda segurava na mão, esses que de surpresa o serviam de novo, Lenocínio juntou as paredes imundas da sua ferida, exposta e irreconhecível e, sem medo, mas incapaz de sentir qualquer coisa, o valente sujeito apontou o bico da tocha em direcção ao alvo, segurando-o assim durante vários segundos, ofegante mas determinado e, passado-os, largou a chama que habitava dentro da botija e dentro de si, não omitindo o incessante grito que acompanhava a cerimónia. Oito segundos passaram-se, depois minutos de exaustão, de novo oito segundos e este processo manteve-se até Lenocínio ter sentido que nada mais de bom poderia fazer, agora que a ferida estava cauterizada, adustada, domada.

Permaneceu no chão, deitado de barriga para cima, retirou a camisa branca e enrolou-a em volta da sua coxa, de modo a proteger a ferida que se estendera ligeiramente. Esta opção permitiu-lhe saber que ratazanas futuras, atraídas pelo cheiro achurrascado, não conseguiriam chegar à sua dor antes que este se apercebesse de tal. Caso o fizessem, em chamas arderiam no seu inferno pessoal.

Lenocínio dormiu no chão do Beco, intermitentemente, com dores e alucinações devastadoras, sem novos ataques de roedores. Quando acordava, após breves minutos de sono, resultantes não do descanso psicológico, mas da exaustão que por sua vez lutava com a dor, olhava pelo buraco no tecto que de manhã o acordaria, para as estrelas, a sua única companhia.
E assim ficou imóvel durante o passado fim de semana todo, de sexta a segunda, quando foi encontrado por Lazarra que ainda assim ignorou os iniciais lamentos do seu colega.
Já mais perturbado com o barulho do que com a ideia de o auxiliar, admite ter-se espantado quando descobriu Lenocínio naquele estado, mas não exibiu as suas emoções. Lenocínio pediu-lhe que lhe fosse comprar um creme para as queimaduras, mas Lazarra não o fez sem pedir que Lenocínio lhe garantisse total pagamento, pelo que este último foi forçado a retirar uma nota das calças.
Lazarra trouxe-lhe um colchão em troca de silêncio e até hoje lá se encontra Lenocínio, pobre e vítima de um escalar alucinante de ocorrências e de um medo inconcebível de apanhar infecções em hospitais, especialmente quando a ferida é grande e está exposta.

As melhoras, valente Lenocínio!,


César Editoras

sábado, 19 de março de 2016

Lados-B De "Emerge-Me!", Itens Obscuros: Uma Colecção de Inseguranças

Itens Obscuros: Uma Colecção de Inseguranças é o nome do disco de Lados-B de Emerge-Me!, projecto musical do nosso consultor linguístico André Lazarra.

Ao longo do tempo em que produziu 2 álbuns, Lazarra, cujas músicas são compostas no momento da gravação, gravou várias vezes no seu telemóvel momentos de moderada inspiração que nunca tiveram propósito específico ou qualidade de som suficiente para motivar a criação de um novo álbum. Assim sendo Lazarra decidiu recolher as melhores peças que encontrou nos vários juguetes onde as gravou e lançá-las de forma inconsequente nas Internets.

A data de lançamento, tal como a lista de músicas, não é sabida, mas apontamos para Maio.

Mais informações seguir-se-ão e, como de costume, recomendamos que visite a plataforma Bandcamp, onde todo o material lançado legalmente por André Lazarra se encontra disponível para compra e livre streaming.


Lenocínio Baptista, Advogado Estagiário

quarta-feira, 16 de março de 2016

"O que é o Corpo Humano?", Artigo de Lenocínio Baptista

O nosso advogado estagiário recebeu um convite da revista científica moçambicana Filhos de Deus, cujo público alvo são crianças literadas, para escrever um texto sobre a complexidade do nosso corpo. É tempo de relembrar que não o teria conseguido sem o seu esforço, claro, mas também toda a exposição que um posto na nossa empresa lhe oferece.
Aqui vai:

"Averiguando a Estrondosa Complexidade da Nossa Materialidade. Uma Reflexão Crítica sobre a auto-compreensão a posteriori do Corpo Humano", por Lenocínio Baptista


"Já parásteis para pensar naquilo que efectivamente compõe o corpo humano? Nos infinitos fluídos e tecidos encobertos que perfazem a nossa vida? Quão curioso é pensar que, embora sejamos racionais e sobre isso não pensemos diariamente, no final de contas somos apenas um saco de carne destinado ao apodrecimento, composto (nova curiosidade), segundo a lei de Lavoisier e comprovado por estudos, por compostos celestes que provavelmente habitaram noutros tempos numa belíssima e longínqua estrela aquando dos primeiros passos do Universo, há 13.8 biliões de anos?
Mas todo o nosso ser é condenado à redução ao físico e psicológico. Geralmente debruço-me sobre temas do foro psicológico, mas hoje, atiro-me à vertente física do ser humano, sem lhe desejar qualquer mal.
Note-se na quantidade de pessoas que, absortas, não estão cientes daquilo que possuirão durante uma vida inteira. Médicos, de nível dificilmente inigualável ainda hoje demonstram grandes dificuldades em compreender o cérebro humano e o seu funcionamento de forma total.
A vida, um milagre uns alegam, é de facto fascinante.
Certas estatísticas são motivo de verdadeiro susto. A mais recente que descobri não me vem clara à memória, mas é referente à quantidade de quilómetros que o sangue navega no espaço de 24 horas.
Factos como o seguinte também têm o seu impacto. O intestino delgado estende-se ao longo de 9 metros num Homem adulto. Mas que fazem 9 metros dentro de um ser de 1 e setenta? Porque não estão melhor distribuídos? Serão estes importantes na medida em que prolongam uma digestão que de outra forma seria mais curta e, portanto, não nos obrigam imediatamente a defecar após uma refeição e nos permitem ser lentamente surpreendidos pela fisiologia e prender, via esfíncter, a carga que nos apressa? Não sei, mas uma coisa é certa, motivam crescimentos anormais de ténias!
Passando ao ponto seguinte, falemos do maior órgão do ser humano, aquele que me custa a acreditar que é realmente um órgão. Em primeiro lugar é preciso definir o que é um órgão. Não consigo, mas a pele com certeza não é um. O facto de ser um órgão só beneficia criancinhas que o aprendem e com esta informação podem surpreender os amigos desnaturados que pensam que a resposta é "Intestino". Mesmo assim, e os pulmões, cuja área total ocupa dois cortes de ténis? Bastante grandes, me aparentam. Na verdade, e como nos ensinou Ed Gein, uma pele bem esticada não só nos fascina pela sua utilidade, como também pela sua extensão.
Por último, tenhamos em atenção a nossa fragilidade. Olhai para as vossas mãos e tentai sentir o sangue a correr. Estranho, correcto? Deveras. Agora pensai nos vossos tendões, observando-os elevando os dedos e esticando as mãos e pensai na facilidade com que um se poderá cortar. E agora pensai nas dores esquisitas que sentirdes todos os dias nas várias zonas do corpo e conjugai isso ao facto da vossa consciência se resumir a uma massa cinzenta dentro da qual VÓS estais. A perspectiva pode arruinar um belo momento de lazer e ávida leitura. Em último lugar, arrancai os olhos e estrelizai as vossas sementes reprodutoras com valentes e consecutivos golpes. Qual a vossa utilidade, para vós e para o mundo? Não o conseguem ver, não conseguem reproduzir-se e já não pertencem à espécie, tal e qual uma mula (verificar informação). Não serão úteis àqueles que vos amam, mas apenas de modo pouco prático e egoísta? E que tal oferecer esse saco de carne, que todos somos, à ciência e àqueles que têm condições para ser humanos, mas caminham mais rapidamente que deviam para o não ser? Não é evidente, nem directo, mas a sua plausibilidade e pertinência é causa de algum desconforto.
E por isso se deve conservar o corpo e a consciência, que do físico apenas dependem. Comei bem, não caí em maus hábitos excepto um à vossa escolha (não recomendo promiscuidade de gama baixa), exercitai-vos não em excesso ou de forma obsessiva e fazei aquilo que no vosso âmago vos conforta. Caso não o façam, Jesus vos chamará, ó crianças para junto dele, como fez daquela vez famosa, e onde estão todas essas crianças hoje? Exacto."



César Editoras

terça-feira, 1 de março de 2016

Um Acontecimento Constrangedor

No último domingo, devido à necessidade de terminar certas legalidades inerentes ao processo de fuga fiscal, Lenocínio foi convidado, pelas 2 da manhã pela equipa da César Editoras, para uma noite de forte e valente bebida.
Determinado a concluir o trabalho que os seus superiores tentavam adiar, Lenocínio retorquiu de forma negativa. Sem melhor companhia, o resultado das políticas agressivas de relacionamento da César Editoras que muitos inimigos lhe criaram, a equipa dirigiu-se ao Beco do Julião para trazer a Maomé a montanha, na forma de algumas grades de uma cerveja desconhecida que Lazarra garantiu "ser razoável".

Entrando no escritório quase derrubando os encaixes da porta, o frigorífico foi aberto para a colocação das pomadas, à medida que os recém-chegados enfiavam a cerveja fria bem fundo no seu tracto digestivo. Lazarra mencionou uma prática, não ficando claro se a exercia ou se o pretendia no momento, uma de usar um funil e despejar de forma fortuita álcool etílico na ampola rectal do voluntário. Mas rapidamente se calou, quando olhares surpresos o atingiram.
Lenocínio dizia que estava quase a terminar e que, se o permitissem, iria o mais rapidamente possível para junto dos seus companheiros, mas todos estes sabiam que o pobre advogado, ao desejar afastar os colegas para uma outra divisão queria somente poder escapulir-se das festividades. Isto porque sempre que Lenocínio havia sido convidado para beber um copo nalguma ocasião limitava-se à unidade, afirmando que o álcool corria nas veias da sua família sem os membros já o quererem e que essa situação havia denegrido a sua imagem e motivado poderosos desarranjos que até hoje esperam reparo.
E desta vez Baptista compreendeu que a pressão exercida sobre si era tremendamente superior àquela que outrora pacificamente era. Algo o transtornava e, se tivesse notado no barril de 15l que os seus colegas trouxeram, ao invés de se fingir concentrado nos seus papéis, teria já naquele momento corrido em direcção à brecha na parede que é grande o suficiente para um homem adulto sair para a rua.
Lenocínio estranhou o silêncio esquisito que de repente preencheu o escritório e a sala, onde os seus colegas tinham permanecido. Olhando em seu redor, ora em direcção à sala, ora em direcção à brecha, Lenocínio hesitava. Mas, como qualquer pessoa dentro do famigerado Beco do Julião, a saída requereria permissão do anfitrião ou captor e, do céu, onde uma fresta ainda maior se estendia, naquilo que em tempos foi considerado uma casa de banho, Viktor Khazyumhov desceu desamparado e empurrou Lenocínio em direcção à cadeira da qual se tentara levantar sorrateiramente.
Por detrás de si, os restantes membros puxaram os braços do estagiário para trás e ataram-no à cadeira, ignorando a enorme abertura sangrenta que colava o zelador tajique ao chão. Um de vigia, um atarefado, um funil foi trazido, mas não para os efeitos que Lazarra mencionou de novo, embora de forma indirecta.
Abrindo-lhe a boca, o funil foi espetado na sua garganta de forma não cirúrgica, posteriormente sendo-lhe administrada a cerveja que, aparentemente era preta e tinha 7 graus, o que induziu o vomitado e a pergunta "Já?" de Khazyumhov, que se levantava para ver o que se passava, ao mesmo tempo entupindo a sua ferida com um cobertor que encontrou no chão.
Com o vomitado Lenocínio ganhou uma batalha, mas a guerra de curto pouco teria. Ou beberia de boa vontade e de forma sôfrega, ou recorrer-se-ia aos métodos antigos! Cedendo e aceitando beber voluntariamente Lenocínio abriu a boca, coberta do seu jantar e sangue, e afastou-a imediatamente, quando o fluxo se revelou extremo. Acontece que Lazarra cortara a base da lata e despejava sem moderação o seu conteúdo na cara do seu colega. Agarrando a cara do rapaz despejou duas cervejas rapidamente, tentando a sua sorte, mas a resposta foi igual à primeira e o movimento brusco de Baptista, que se tentava soltar das amarras bêbedas do consultor linguístico inclinou-se e, com os braços pregados à cadeira não conseguiu evitar que a sua cara embatesse no chão com a força de mil baques, coberto pelo conteúdo por si regurgitado e pela cerveja que recusou beber minutos antes.

De repente confrontados com o escalar desnecessário da situação a equipa césar-editoriana compreendeu as inúmeras violações dos direitos básicos do ser humano que acabara de cometer. Sem arrependimentos, mas com medo das consequências liberam, com nojo e inquietação, as amarras do advogado estagiário e sentaram-no de novo na cadeira, agora endireitada. Viktor Khazyumhov foi imediatamente buscar a esfregona e o balde, provando que afinal sabe onde estes são guardados, e encetou uma extrema e eficaz lavagem da confusão instaurada.

Rapidamente Lenocínio recompôs-se e, de forma lamechas que decidimos sintetizar em curtas frases, confessou ter nos ADN genes de "atrasado mental" (expressão sua!), que haviam sido originados pelas consecutivas e intermináveis gerações de alcoólicos que o haviam precedido, tendo na família próxima casos que bem servem de comprovativo. O álcool, diz o próprio, coloca-o num estado extremamente raivoso e distinto, que o obriga a cometer os mais hediondos crimes, do foro sexual, geralmente, não contra os da sua mesma espécie , mas contra animais domésticos que ficam incrédulos com o último grito em festas, aquele do prazer. Sem acesso a esta preferência, Lenocínio fica ainda mais furioso e inicia uma descontrolada vaga de insultos, esmurrando com toda a valentia qualquer objecto que considere merecer maus tratos. O advogado estagiário aceitou não processar a César Editoras se em troca nada mais do género lhe acontecesse e se pudesse retirar mais um dia de férias por ano enquanto na empresa trabalhasse. Uma proposta razoável.

Ainda assim, os membros da empresa causadores da confissão ficaram extremamente perturbados com o facto de o seu colega não os ter informado dos genes que o compunham e, não tentando perceber se Lenocínio é de facto mentalmente limitado ou não, incutiram-lhe ordenadamente cada um uma bofetada na cara, saindo depois cada qual em direcção à sua residência.

Lenocínio, inconsciente, dormiu no Beco do Julião.



César Editoras